A democracia liberal está passando por uma crise em várias partes do mundo. Diversos autores importantes interpretam tal crise de maneiras distintas e complementares. Para tanto, se torna essencial compreender o que tais pensadores estão dizendo, com a finalidade de buscar compreender as origens desta. Assim, parte-se da hipótese de que a crise democrática possui relação, além de com outros pontos, com o populismo, a descrença nos processos políticos e nas instituições, que se corromperam ao longo do processo e com o neoliberalismo, argumentando ser ilusória a coexistência de uma sociedade democrática e liberal ao mesmo tempo. Dando ênfase para a problemática do neoliberalismo, percebe-se ser necessária a existência de um ambiente de igualdades sociais, políticas e econômicas para que assim, a democracia seja de fato implementada.

A democracia é um dos tipos de regimes políticos mais falados e estudados na ciência política desde a sua consolidação como disciplina. Ao longo de sua evolução na história, vários foram os pensadores que analisaram, sob diferentes aspectos, tal regime. Tendo isso em mente, se torna de suma importância a realização de um debate acerca das visões sobre a democracia que aqui são levadas em consideração.

Um dos pensadores importantes no estudo da democracia é Alan Badiou. Badiou (2011) reconhece a existência de debilidades na democracia e, além disso, argumenta que, por mais que a palavra “democracia” venha passando por desvalorizações, esta permanece e permanecerá sendo o emblema predominante da sociedade. Ademais, reconhece que este é um emblema intocável que faz parte de um sistema simbólico sólido. Como demonstra o autor “você pode dizer o que quiser sobre a sociedade política, exibir um zelo «crítico» sem precedentes, denunciar o «horror econômico» e sempre receberá o perdão, contanto que o faça em nome da democracia” (BADIOU, 2011, p.6, tradução nossa).

Outro pensador seminal para esse debate é Adam Przeworski. Przeworski (2020), por sua vez, acredita que um sistema democrático funciona bem quando o arcabouço das instituições políticas é adequado para lidar com os conflitos que surgem na sociedade. Para ele, as eleições seriam o mecanismo basilar, que detém a capacidade de lidar com tais conflitos no seio das democracias. Porém, isso só funcionaria bem caso os riscos para tal não fossem interpretados como muito grandes, por exemplo, quando perder uma disputa política não seja considerado um desastre para os perdedores, “o milagre da democracia é as forças políticas em disputa aceitarem os resultados da votação” (PRZEWORSKI, 2020, p.191) e quando tais forças políticas derrotadas tenham chances reais de vencer em futuros pleitos. Sendo assim, quando partidos que são ideológicos chegam ao poder e tentam derrubar obstáculos representados pelas instituições do sistema democrático, a democracia acaba se deteriorando ou retrocedendo.

Por outro lado, Tilly (2007) argumenta que para analisar se um país pode ou não ser qualificado como uma democracia, deve-se levar em consideração algumas questões base, tais como a posição política dos regimes e a qualidade de vida das pessoas nesses regimes. Nesse sentido, a posição política dos regimes diz respeito ao fato de que os detentores do poder teriam de saber se estariam lidando com democracias ou outros tipos de regime, levando em consideração que as democracias se comportariam diferentemente dos demais tipos de regimes políticos. Já a qualidade de vida das pessoas seria um bem em si mesmo, afinal, em teoria, a democracia confere à população o poder coletivo de produzir seu próprio destino e, na maior parte das vezes, outorga melhores condições de vida para os indivíduos, como em temas de acesso à educação, assistência médica e proteção legal.

Outro trabalho importante nesse sentido é o de Robert A. Dahl, titulado “Sobre a Democracia”. Dahl (2001) relaciona o sistema democrático com o fato de que todos os componentes que participam deste devem ser considerados como politicamente iguais “todos os membros deverão ser tratados (sob a constituição) como se estivessem igualmente qualificados para participar do processo de tomar decisões sobre as políticas que a associação seguirá” (DAHL, 2001, p.49). O autor também aponta em sua apreciação, critérios tidos como imprescindíveis para se ter um processo democrático que respeite a exigência de que todos devem ser considerados como igualmente habilitados para participar das decisões da associação, dentre os quais figuram o critério da participação efetiva (que aponta para a necessidade de que antes de que uma política seja adotada, todos os membros devem ter oportunidades iguais para fazer com que os outros fiquem conhecendo suas opiniões acerca de uma determinada política), o critério da igualdade de voto e o critério do entendimento esclarecido (que estipula que dentro de limites razoáveis de tempo, cada um dos membros deve possuir oportunidades iguais de instruir-se sobre as políticas importantes, assim como sobre suas prováveis consequências). Segundo ele, quando qualquer uma dessas exigências fosse violada, os membros não seriam politicamente iguais, logo, não haveria um processo de fato democrático.

Ademais, Dahl (2001), constata que a expansão da democracia pode ser conectada à disseminação de ideias e de práticas democráticas, mas a extensão de seu argumento reside em demonstrar que a difusão não seria suficiente para explicar como um fenômeno de tal magnitude se propaga. O autor acredita que a democracia teria sido inventada e reinventada mais de uma vez, em mais de um local. Assim, sempre que estiveram presentes condições apropriadas para tal, a democracia esteve presente, “por exemplo, devido a condições favoráveis, é bem provável que tenha existido alguma forma de democracia em governos tribais muito antes da história registrada” (DAHL, 2011, p.19). Percebe-se, desta forma, que a democracia não é uma configuração política que pode ser notada com constância linear ao longo do tempo, já que ele foi inventada e reinventada na história ou, em outras palavras, passou por crises e ainda passará por diversas outras enquanto algumas debilidades ainda permearem sua organização.

Visto isso, diversas são as debilidades que têm permeado esse sistema político, sendo que a que demonstra ser mais acentuada é a existência de desigualdades sociais, políticas e econômicas dentro dos sistemas democráticos. Por mais que a democracia tenha sido inventada e reinventada diversas vezes até a atualidade, a equidade social continua sendo um aspecto delicado que não foi totalmente colocado em prática. Porém, somente é possível ter participação política aos moldes do que Dahl (2001) expõe caso todos os cidadãos possam exercer sua participação política efetiva. Sendo assim, caso os cidadãos vivam em um ambiente de desigualdades acentuadas, estas acabam impossibilitando a plena participação no processo democrático, o que, por sua vez, acaba por configurar uma fraqueza da democracia que se propaga até os dias de hoje.

No que tange o tema das disparidades ainda existentes dentro de sistemas democráticos e sua relação com o neoliberalismo, Przeworski (2020) aponta que a democracia e o capitalismo não poderiam coexistir, afinal “em sociedades nas quais apenas algumas pessoas desfrutam da propriedade produtiva e nas quais a renda é distribuída desigualmente por mercados, a igualdade política, combinada com o governo da maioria, representa uma ameaça à propriedade” (PRZEWORSKI, 2020, p.41). Porém, ainda assim, a democracia tem sido perseguida por países capitalistas, tendo sido, inclusive, atrelada aos ideais do liberalismo e se fortalecido nessas sociedades, ainda que nelas seja constante a má distribuição de renda e as desigualdades sociais. Desta forma, o autor argumenta que acaba sendo improvável que se dê o colapso da democracia em Estados economicamente mais desenvolvidos e que nos menos desenvolvidos, a democracia tende a ser mais vulnerável devido, justamente, à desigualdade de renda.

Além dessa análise, Przeworski (2020) delineia alguns sinais em torno dos quais a atual crise da democracia poderia se debruçar, como o fato de que os sistemas partidários tradicionais estão passando por um rápido desgaste em sua imagem e credibilidade frente a seus eleitores; o consequente avanço de partidos e atitudes xenofóbicas, nacionalistas e racistas; e aponta para a queda no apoio relegado à democracia em pesquisas de opinião pública. Um ponto relevante acerca do apoio dado pela população à democracia é o de que várias pesquisas apontam para o fato de que por mais que as elites percebam a democracia em termos institucionais, a população como um todo a percebe em termos de igualdade, tanto social quanto econômica. Assim, não sendo possível para os Estados realizar tal redistribuição e proporcionar maior igualdade para o povo, a democracia está passando por um descrédito, encontrando apoio cada vez menor do público em geral.

Por outro lado, Castells (2018) argumenta que a crise da democracia liberal é resultado de vários fatores em conjunto. Ele assinala a globalização da economia e das comunicações como um dos fatores determinantes, por ter desestruturado as economias dos países e limitado a capacidade dos Estados em responder a problemáticas que se tornaram globais; além disso, diz haver uma crise de legitimidade, em que se percebe uma recorrente frustação por parte da população em relação ao sistema, afinal os serviços básicos para essa mesma população têm sido cortados e reduzidos, prejudicando-os; por fim, também identifica que há uma crise identitária.

Outro ponto que chama a atenção em sua argumentação é o de como a globalização teria gerado o aumento nas desigualdades à medida que os profissionais de maior instrução começaram a se conectar com outras partes do mundo “em uma nova formação de classes sociais” (CASTELLS, 2018, p.18), de forma que hoje existem as elites cosmopolitas e os trabalhadores locais, que se tornaram desvalorizados. Desta forma, para ele, a desigualdade social resultante da globalização, responsável por dividir os trabalhadores em categorias de valorizados e não valorizados, é a mais alta da história recente da democracia. E, além do aumento das desigualdades, há também uma alta polarização social, já que os ricos estão ficando cada vez mais ricos e os pobres ficam cada vez mais pobres, ou seja, não há mobilidade entre as camadas sociais. Porém, o autor afirma acreditar que tal crise seja em relação à democracia liberal, ou seja, que cada vez mais pessoas se tornam descrentes com esse tipo de democracia, ao passo que a grande maioria permanece defendendo o ideal democrático.

Em suma, ainda é cedo para saber o que irá acontecer com a democracia liberal diante da ocorrência dos fatores expostos, porém, é perceptível que nas raízes das crises -ou reinvenções- da democracia, se encontra a problemática das desigualdades que ainda se encontram presentes dentro de tal regime político. Assim, destaca-se a compreensão de que o papel social que o Estado representa é de importância crucial para a democracia. Como aponta Gavião (2015), sua redução desencadeia em vários problemas, devido a propagação de um sistema que acentua as diferenças entre as classes sociais. Desta forma, a igualdade política e a equidade social mostram ser aspectos relevantes para a democracia, uma vez que seria preciso ter igualdade de condições para ter o mesmo poder de decisão dentro da sociedade.

A igualdade é o princípio primordial de uma sociedade democrática, e é justamente por isso que Estado deve ser o responsável por fornecer ferramentas para que as oportunidades e os direitos sejam os mesmos para todos os cidadãos, afinal “a democracia não é um donativo do capitalismo, mas uma conquista das massas (GAVIÃO, 2015, p.119)”. A democracia requer apoio do Estado, como para a implementação de políticas sociais e econômicas que reduzam as desigualdades. Por esse motivo, a democracia só será plena se políticas de equidade social forem promovidas pelo Estado por meio de políticas de proteção social, de forma que todos os cidadãos estejam efetivamente em pé de igualdade na sociedade.

Compreende-se, então, que a democracia ainda é um projeto em desenvolvimento no mundo, passível de passar por crises e reinvenções. O caráter inconcluso do conceito de democracia demanda comprometimento com o projeto, para que este possa ser sempre aprimorado e encontre sustentação duradoura. Para tanto, tem-se que o aumento da participação do Estado nos processos sociais e a busca pela equidade social é o caminho rumo à consecução de um processo democrático real e sustentável. A presença de um Estado mais fortalecido é importante para corrigir deficiências sociais e para a consecução da cidadania e da democracia de fato, a qual demanda participação das massas, sendo necessário que a população exija e lute por seus direitos enquanto cidadãos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BADIOU, Alain. The Democratic Emblem. In: AGAMBEN, Giorgio et al (org). Democracy in what state?. New York Chichester: West Sussex Démocratie, 2011. p. 6-16.

CASTELLS, Manuel. Ruptura: A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. Caps. 1 e 2.

DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. Caps. 4 e 5.

GAVIÃO, Leandro. Considerações sobre o liberalismo econômico e a democracia. In: COELHO, Marco Antônio et al. E agora Brasil?. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2015. p. 114-122.

PRZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

TILLY, Charles. Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. Caps. 1, 3, 5 e 6

 

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